domingo, 20 de maio de 2012

Das batalhas e alegrias nossas de cada dia

Ser mãe e pai é uma empreitada deliciosa, gratificante e... exaustiva. Mas ser mãe e pai de uma criança com deficiência leva as coisas a um nível de fadiga que poucos conhecem. Por mais que eu tenha uma boa noite de sono - e há oito meses não tenho, mas por um ótimo motivo, que é alimentar nosso caçulinha, Rafael, nas madrugadas -, há um cansaço físico e emocional que está sempre ali. Visitas a médicos e exames não ocorrem poucas vezes no ano. Quase todo dia tem uma terapia: fonoaudiologia, psicomotricidade... Estamos considerando agora a musicoterapia e algum esporte. O tempo livre muitas vezes é usado pesquisando por novos tratamentos, escolas, medicação e até dietas que prometem melhora.

Além disso, como um verdadeiro membro da realeza, nosso príncipe Felipe precisa de auxílio para todas as tarefas diárias: escovar os dentes, tomar banho, se vestir, se alimentar e ir ao banheiro (ainda não conseguimos que ele faça o nº 2 no vaso, então, o trabalho é duro meeesmo). Na escola, este ano, ele conta com a ajuda de uma mediadora escolar (a psicóloga Karina, uma jovem muito aplicada), além da auxiliar Dalva (que, se eu pudesse, carregava para casa para ser babá do Felipe). E, viva!, nosso garotinho está participando de algumas atividades em sala de aula, permanecendo junto com o grupo por bons períodos.

Me pego muitas vezes impaciente com todo esse trabalho. Nos lugares públicos, temos que segurar Felipe o tempo todo para que ele não saia correndo e se perca, não meta a mão na comida dos outros, não dê um de seus deliciosos abraços de urso numa criança de dois aninhos (eu já não sei onde enfiar minha cara nessas situações, hehehehe). Em casa, temos que impedir as traquinagens - algumas perigosas, como ingerir líquidos tóxicos (desinfetante, acetona etc), outras inofensivas, porém, de tirar do sério, como tirar a terra dos vasos de plantas. Enfim, um trabalho que a maioria dos pais tem por uns dois ou três anos. Para o Carlos e para mim, já dura quase seis anos e não há prazo para acabar.

Às vezes, imagino como ele estaria hoje se não tivesse o transtorno desintegrativo. O mesmo garotinho lindo, convidando amiguinhos para brincar em casa, pedindo presentes, contando histórias de seu dia, perguntando sobre o mundo que o cerca. No entanto, me alegro quando vejo as pequenas conquistas de Felipe: a execução de uma solicitação - como calçar as sandálias, acender a luz, tirar a calça, dar tchau - ou quando ele resolve cantar o pedacinho de uma música: "Coelhinho da Cuáscua, que tazes a mim? Um ovo, dois ovos, assim!"  Coisas tão simples, mas que, para uma mãe e um pai de uma criança autista, despertam a esperança de um futuro promissor.

Até onde ele vai chegar não sabemos, mas escolhemos a forma que, acredito, seja a mais saudável, de lidar com a síndrome - a da inclusão social, que requer enfrentamento diário de obstáculos, o convívio com crianças com desenvolvimento normal em uma escola regular e o estímulo cognitivo através de pessoas qualificadas e apaixonadas. Não existe uma fórmula de sucesso para o prognóstico favorável de crianças com autismo, mas acreditamos que existe um caminho: o do amor, da compreensão e da dedicação, ingredientes indispensáveis para o progresso de qualquer criança.



quinta-feira, 10 de maio de 2012

Num reino distante


Meu filho mais velho, o Felipe, é um príncipe. E, como todo príncipe, vive num reino distante. Mas não foi sempre assim. Vou tentar contar como ele foi parar lá no tal reino. Essa viagem começou há pouco mais de um ano, quando ele tinha quatro anos e meio. Hum, esse post vai ser longo...

Até então, eu me preocupava com um pequeno atraso de linguagem que Felipe apresentava. Ele também não era muito de se juntar às outras crianças. Mas, desde que meu garotinho tinha três anos, íamos regularmente a uma neuropediatra renomada, que acompanhava o seu desenvolvimento, e a uma psicóloga/psicomotricista, nossa querida Ana Paula, que o acompanha até hoje. Ele vinha progredindo bastante! Felipe adorava DVDs de desenhos animados, livros de histórias, teatrinho, os bonecos de seus personagens prediletos e os carrinhos Hot Wheels e suas pistas de corrida mirabolantes. Era craque no Lego e também fazia desenhos lindos: bichinhos, pessoas, frutas. A professora da creche destacava que, no desenho, ele era imbatível. De repente, de repente mesmo, tudo degringolou.

Percebemos essa mudança de comportamento a partir de fevereiro de 2011 (logo depois que eu descobri que estava grávida do Rafael, mas essa hístória fica para depois). Felipe começou a ficar birrento, chorão, ansioso, medroso. Quem tem criança pode pensar que, ora, isso é normal, é fase, meu filho já passou por isso. Mas era tudo multiplicado por 10, cem, mil, sei lá. Ele virou uma criança triste. Passou a ter medo de tudo e, principalmente, de me perder. Ficava agarrado comigo o tempo todo. Parecia, às vezes, estar vendo coisas e tinha pavor dessas coisas. Ficou agressivo e sua agressividade surgia do nada, sem que ninguém tivesse feito algo contra ele. Na escola, se recusava a participar de qualquer atividade. Só chorava. A agitação não o deixava dormir. Não raro, só apagava lá pras 3, 4 horas da manhã. Foi quando a neuropediatra bateu o martelo: ele precisava ser medicado.

Relutamos muito: eu e Carlos, meu marido. Foi difícil aceitar que nosso garotinho, tão pequeno, precisava tomar remédios psiquiátricos. Até que a diretora da creche me chamou e disse que eu, com meu preconceito, estava deixando meu filho sofrer. E, em maio de 2011, ou seja, há um ano, ele começou a tomar a risperidona.

Dou meu braço a torcer: Felipe voltou a sorrir. E voltou a dormir. O medo e a ansiedade foram embora na maior parte do tempo. Mas, aos poucos, meu rapazinho começou a perder o interesse nos brinquedos, nos desenhos animados, nas historinhas dos livros, nas atividades propostas na creche. Continuou agitado. E cada vez mais disperso, mais distante... E falando cada vez menos. Embarcou na viagem para o tal reino.

Em agosto, a neuropediatra, numa avaliação feita junto com uma psiquiatra, disse que o Felipe se encontrava no espectro autista. Eu não entendia aquilo. Como podia ser, se até então ele não era autista? Ao ouvir isso, fiz o que toda mãe faz quando ouve um diagnóstico (ou algo parecido com isso): fui descobrir quem eram os maiores especialistas no assunto. E, então, cheguei ao nome da neuropediatra que trata o Felipe agora.

Fomos ao seu consultório em janeiro passado depois de mover mundos e fundos para conseguir uma consulta o quanto antes (a agenda dela é lotadíssima). Depois de ouvir um "Nossa, como é bonito esse menino. Parece um príncipe!" (não sou só eu quem acha isso, viram?), recebemos em seguida um diagnóstico (ou, mais uma vez, algo parecido com isso) assustador:
- Se eu tivesse de fazer um laudo para um juiz, colocaria que o Felipe tem o chamado Transtorno Desintegrativo da Infância. Mas, como não precisamos fazer laudo algum, vamos trabalhar em cima dos sintomas do Felipe e não de um diagnóstico - disse a neuropediatra.
Lá fui eu descobrir tudo sobre o tal transtorno, chamado também de Síndrome de Heller. As crianças com essa perturbação, após um período de desenvolvimento psicomotor convencional de três ou quatro anos, experimentam uma regressão psicomotora, levando-as à perda das faculdades intelectuais e a um estado de alienação. Punk.
Algum tempo depois de instalada a regressão, as crianças passam a apresentar as alterações comportamentais encontradas no autismo (especialistas tratam a doença como autismo de início tardio). Assim, dentre outros sintomas, demonstram graves problemas na compreensão da linguagem, dos gestos e da expressão facial dos seus interlocutores.
Para se fechar um diagnóstico, os artigos médicos descrevem assim:
Obrigatoriamente, terão de ser referidas perdas em pelo menos duas das seguintes áreas:
- Linguagem expressiva (deixa de nomear objetos, perde a capacidade de juntar palavras) ou compreensiva (deixa de compreender pequenas ordens, perde a capacidade de reconhecer objetos)
- Socialização e autonomia (perde o interesse de brincar com os pais ou com crianças, deixa de reconhecer pessoas familiares, mostra-se incapaz de utilizar a colher ou de beber num copo, perde a capacidade de tirar as meias e os sapatos)
- Controle intestinal (deixa de controlar as fezes) ou vesical (perde a capacidade de controlar a urina);
- Jogos (perde o interesse em brincar ao "faz-de-conta", deixa de bater palminhas, mostra-se incapaz de utilizar os brinquedos de forma funcional);
- Motora (deixa de correr ou de andar, perde a capacidade de utilizar o lápis no papel, mostra-se incapaz de fazer a pinça fina).


Felipe não deixou de correr (pelo contrário, ele passa quase o tempo todo correndo dentro de casa) ou de reconhecer as pessoas próximas e compreende pequenas ordens. Mas, o melhor de tudo, é que, ainda que nosso príncipe não saiba muito bem como brincar, ele se diverte com muitas coisas: adora quando eu e o pai dele corremos para pegá-lo, fica extremamente feliz ao mergulhar no mar, tem mania de agarrar as outras crianças e curte muito quando elas entram na "brincadeira" dele.
Ainda me desespero um pouco quando leio que a evolução desta doença é geralmente desfavorável - o prognóstico parece ser mais reservado do que nos casos de autismo clássico ou outras síndromes do espectro, como a de Asperger. Depois da fase verdadeiramente dramática que corresponde à regressão psicomotora, está descrito, com frequência, um período de não progressão da doença (não evolutivo), mas com poucas melhorias subsequentes. Mas estamos decididos a não nos deixar abater. É claro que nem sempre eu consigo cumprir com essa decisão. Aí vem o Carlos e me lembra que o Felipe precisa que a gente não esmoreça. Jogo uma água no rosto e arregaço as mangas novamente.