terça-feira, 27 de novembro de 2012

Um mundo que não é cor-de-rosa... mas é colorido!

Se tem uma coisa que aprendi com o Felipe, foi a não julgar as pessoas pelas aparências. Aquela criança que chora demais, grita demais (seja por estar brava ou por estar feliz), bate nas outras ou é inconveniente, talvez não seja o resultado de uma educação displicente ou tolerante demais. Pode ser que essa criança seja autista e não tenha as ferramentas necessárias para dizer ou mostrar o que quer, o que precisa, o que sente. E que a única forma de comunicação de que ela dispõe é o grito.

Pois é. Aqui, depois de mais ou menos uns 8 meses de bonança, estamos passando por uma tempestade. Crises intermináveis de choro, gritaria e rompantes de agressividade. Aparentemente, começou do nada. Mas é claro que não foi do nada. Pensei muito para tentar descobrir o que poderia estar angustiando meu menino. Nada no autismo me dói mais (e me deixa com muita raiva, pra falar a verdade) que vê-lo sofrendo.

Tudo começou no dia anterior à volta ao trabalho de Carlos, que ficou de licença médica por um período longo. Seria esse o motivo? Um sofrimento pela "separação do pai"? Ou, quem sabe, uma ansiedade causada pelas conversas dos adultos sobre a escola na qual estudará ano que vem. A verdade é que, porque Felipe não nos faz perguntas, sem querer deixamos passar algumas explicações que deveriam ser dadas. Não explicamos que, agora que papai está melhor, já pode trabalhar e por isso está passando menos tempo em casa. Também não contamos que, por que ele está crescendo, a partir do ano que vem terá de frequentar uma escola nova e conhecerá novos amiguinhos. Ops, erramos feio.

Mas esse parênteses foi porque eu queria dizer o seguinte: autismo não é falta de disciplina. O autista tem dificuldades com o novo, prefere a segurança da rotina. Suas percepções sensoriais são desorganizadas. Significa que visões, sons, cheiros, gostos e toques do dia a dia, que talvez você sequer note, podem ser extremamente incômodos para ele. Então, por favor, não faça cara feia se uma criança na mesa ao lado do restaurante, ou na pracinha, ou na fila do supermercado, grita muito. Procure ser compreensivo se uma criança desconhecida bateu ou tirou um brinquedo da mão do seu filho.  Talvez ela esteja querendo fazer amizade, só não sabe direito como iniciar essa relação. Ah, e por mais atenta que a mãe seja, às vezes alguns comportamentos considerados inadequados vão lhe escapar.

E se o nosso mundo não é totalmente cor-de-rosa, tudo bem. Ele tem um pouco de rosa, um pouco de azul... como o céu de fim de tarde do dia em que Carlos tirou essa foto, na praia do Leme. Foi para onde ele levou Felipe numa tentativa de acalmá-lo depois de uma crise de choro das brabas. Deu certo!



quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Verbal ou não-verbal, eis a questão

"Isso é muito chato!". A explosão de Felipe veio durante os exercícios que fazia, meio contrariado, na sessão de fonoterapia. Pois é, ele falou. E não só falou, como falou uma frase inteira e totalmente contextualizada. É claro que eu estou que nem uma boba contando pra todo mundo a façanha do meu filho, né?

De vez em quando sou questionada se Felipe é autista verbal ou não-verbal. Foi assim quando conversei pela primeira vez com o professor de natação, com a fonoaudióloga, com a psicóloga especializada em ABA (Applied Behavior Analysis, um tipo de intervenção comportamental, que ele acaba de começar), com as escolas que visitei. Não sei responder. Felipe não conversa. Apresenta um pouco de ecolalia (que é a repetição de palavras/frases que ouviu, soltas, fora de contexto), pede algumas coisas (pipoca, batatinha, amendoim, bala) e, ÀS VEZES (em letras maiúsculas e negrito) responde a algo que a gente pergunta, monossilabicamente. Mas a maior parte do tempo só faz barulhinhos com a voz. Não sei se ele é considerado verbal.

Nem por isso deixo de conversar com meu filhote. Pergunto como foi na escola, se ele brincou com os amiguinhos, se a tia Aline contou historinhas, se ele fez algum trabalhinho bem legal. Ele não responde nada, mas eu continuo perguntando. E falo sobre coisas que vamos fazer, tipo: "Esse fim de semana vamos pra Miguel Pereira. Você adora ir pra lá, né? Você vai brincar com o Tupã?", questiono, referindo-me a um dos cachorros da minha irmã.

Na rua, a situação é sempre meio esquisita. Lindo que só (ai, que mãe modesta), Felipe chama a atenção de desconhecidos, que querem puxar papo com ele. Como ele não responde às perguntas das pessoas, respondo eu. Devem achar que eu sou uma mãe repressora, que não deixa a criança falar, hehehe... Outro dia um ascensorista me perguntou se ele estava com algum problema na garganta! Fico numa saia justa porque não gosto que Felipe me ouça dizer que ele é autista e por isso não fala. Porque não quero que ele acredite nisso. Ele pode falar, sim. 
 
Li recentemente num artigo a história da adolescente americana Carly Fleischmann, autista não-verbal que, quando criança, parecia não ter habilidade alguma. Carly estava sempre em constante movimento, destruindo coisas (o comportamento de Felipe é bem semelhante), ou sentada sozinha se balançando. Ela tinha um aparelho de comunicação com figuras para mostrar o que queria e um professor ia deletar a função teclado do aparelho quando, um dia, ela digitou: “ajuda dentes doem”. Depois que isso aconteceu, um programa foi iniciado para ensiná-la mais palavras. Todos os objetos na casa receberam rótulos. Carly estava absorvendo uma quantidade enorme de informação, apesar de parecer que ela não estava prestando atenção em nada.

Carly hoje consegue explicar, via escrita, que pensa em imagens, que chegam a ela todas de uma vez. Filtrar todos os estímulos sensoriais que acontecem ao seu redor é difícil e ela, frequentemente, tem dificuldade para entender o que as outras pessoas estão dizendo. Por exemplo: se ela está em um café com outra pessoa, o barulho ao fundo, relativamente baixo, assim como os estímulos visuais, até podem ser filtrados. Mas sua capacidade para “filtrar o áudio” de repente fica sobrecarregada quando alguém passa por sua mesa usando muito perfume. Então, os sons (previamente filtrados) da cafeteira e a visão da porta abrindo e fechando entram em sua mente e bloqueiam a conversa. Tudo se transforma em caos. Nesse ponto, controlar uma “crise” é praticamente impossível. Para isso, ela precisa de medicação e muito autocontrole.

Por que estou contando isso tudo? Porque acredito que, aos poucos, vamos conseguir ajudar Felipe a pôr ordem na sua cabecinha. Como Carly está conseguindo. Enquanto isso, vou super comemorando cada pequena vitória. Sabe qual foi a última? "Felipe, quantos anos você tem?" "Seis anos." Aaaaaaahhh!!! Não é o máximo?


Em Miguel Pereira


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Enfim, vamos falar de inclusão


Era novembro do ano passado e eu estava decidida a tirar o Felipe da creche onde ele estuda. Liguei para uma escola conhecida da Tijuca, recomendada inclusive pelo trabalho de inclusão. Em seu site, a escola se dizia "plural e coerente com uma sociedade mais justa e democrática". Parecia, assim, perfeita para receber nosso príncipe. Alô, gostaria de saber se a escola tem vaga para a última série de pré-escola em 2012. Resposta: Temos sim. E lá fui eu, cheia de expectativas. Na visita, a coordenadora me apresentou o projeto pedagógico e as instalações, tudo com um sorriso no rosto. Ao fim do tour, sentamos para conversar e contei que ainda não tinha um diagnóstico fechado, mas tudo indicava que meu filho tinha um transtorno do espectro autista. O sorriso desapareceu... Sinto muito, mas, infelizmente, não temos mais vagas para crianças especiais.
 
Desde que criei o blog, queria falar de inclusão escolar. Mas o tema é sofrido para mim (como é para a maioria dos pais de crianças especiais) e acabei, meio que inconscientemente, adiando esse papo. Mas agora, vamos lá.

Felipe, que vai fazer 6 anos esse mês, frequenta a mesma creche há pouco mais de quatro anos. O espaço é sensacional e as profissionais são dedicadas. Acontece que, no ano passado, quando ele mergulhou num processo de regressão de desenvolvimento e perda de linguagem, ninguém por lá sabia direito como lidar com a questão. Eu ia às reuniões de pais e via a professora apresentar os trabalhinhos de todos os alunos, menos do Felipe. Assistia à exibição de fotos das atividades realizadas pela escola e Felipe nunca aparecia. A equipe dizia que ele se recusava a participar. Que ele só chorava e gritava. E aí era eu que saía de lá chorando e chorando.

Então, resolvi me informar sobre escolas reconhecidas pelo trabalho com inclusão. Visitei quatro - três na Tijuca e uma no Largo do Machado. Fomos recusados em todas. Havia vagas, mas não para o meu filho. As escolas alegaram que já tinham um número x de crianças especiais matriculadas e que esses alunos requerem mais atenção, por isso o número de vagas é limitado (mas é limitado meeesmo, pois na minha visita só vi uma criança especial naquela escola citada lá em cima). Mas, vamos combinar? Isso é inconstitucional. Se há vagas e eu vou pagar a mensalidade como qualquer outra mãe, a escola não pode me fechar as portas, pode? Assim como ninguém pode ser discriminado por sua cor de pele, crença religiosa ou opção sexual, uma criança não pode ser discriminada por ter dificuldade de aprendizagem ou qualquer necessidade especial, ora bolas. Uma instituição de ensino tem que estar preparada para ensinar qualquer tipo de criança que chegue. É claro que eu pensei em ir à Justiça. Mas não quero que meu filho estude num lugar porque assim foi determinado por um juiz. Eu precisava de uma escola que quisesse recebê-lo.

Felipe acabou ficando na mesma creche este ano. A neuropediatra que o acompanha sugeriu que contratássemos uma mediadora escolar (nunca tinha ouvido falar disso, você já?) e assim eu fiz. Seu papel é possibilitar que oportunidades sejam criadas para que Felipe aprenda não apenas o conteúdo pedagógico, mas também as regras de convívio social. E a jovem Karina, estudiosa do assunto e apaixonada pelo que faz, espalhou na creche uma onda de entusiasmo pela inclusão. Coordenadoras, professoras, auxiliares, enfim, toda a equipe parece empenhada em ajudar o Felipe a se desenvolver. Sem falar nas crianças que, amigas do Felipe desde sempre, fazem isso por instinto.

Infelizmente, esse deverá ser o último ano dele lá, pois a creche não tem ensino fundamental. E, assim, voltei a visitar escolas e até encontrei algumas que se dispuseram a recebê-lo. Mas o que realmente se pode chamar de inclusão? Será que a inserção de crianças com necessidades especiais, como as que se encontram no espectro autista, em escolas regulares, é suficiente para intitularmos este processo como tal? Para mim, ficou muito claro que as tais escolas não estavam super felizes de receber meu filho como aluno. É quase como se estivessem me fazendo um favor.

Semana passada, visitei um colégio bem pequeno, em Laranjeiras, criado pela avó de um menino autista que havia passado pela mesma dificuldade de encontrar uma instituição de ensino para seu neto (ela chegou a visitar 60 escolas no Rio!) e, pedagoga aposentada, decidiu fundar uma. Há crianças com desenvolvimento normal por lá, mas são minoria. Existem, portanto, vantagens - eles parecem realmente saber o que estão fazendo - e desvantagens - a socialização poderia ser prejudicada, já que a maioria das crianças também tem dificuldade nessa área. Mas, o mais importante: dona Regina quer, e muito, ter o Felipe como aluno. Já é meio caminho andado...


domingo, 5 de agosto de 2012

Uma luz para o autismo no fim do microscópio

Quando nós, pais, recebemos o diagnóstico de que nosso filho está no chamado "espectro autista", confirmando algo que já suspeitávamos, a dor é profunda demais. E ela vem acompanhada do medo, da culpa, da revolta. Mas também sentimos, quem diria, um certo alívio. O inimigo ganha nome e sobrenome e, finalmente, podemos (ou achamos que podemos) traçar um plano de ação.  Entramos na fase de arregaçar as mangas em busca de um milagre, mergulhando em livros, filmes, blogs, estudos. E foi na busca desse milagre que descobri o cientista brasileiro Alysson Muotri, radicado nos EUA, que trabalha em pesquisas sobre autismo. E que começa a enxergar uma luz no fim do microscópio. A entrevista que fiz com ele saiu hoje, num especial sobre medicina do futuro do caderno de Saúde do Globo. Meu agradecimento especial à Daniela Laidens, do blog Janelinha para o Mundo, que já tinha entrevistado o Alysson e me deu a maior força para fazer essa matéria.
 
Leia a entrevista aqui.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Amigos: não poderia existir melhor estimulação para uma criança autista

Sábado passado foi a festa junina da escolinha do Felipe. Eu já havia sido informada de que seu par na quadrilha seria a professora dele, tia Aline. Isso me deixou aliviada, pois eu me preocupava com a altíssima probabilidade de Felipe não querer dançar (ou, pior, como já aconteceu em outras festinhas, ele poderia ter uma crise de pânico, por não entender o que estava acontecendo...). E aí a amiga escolhida para ser sua acompanhante ficaria, coitada, sozinha. Mas meu lindo caipira foi para a fila da quadrilha com um par diferente...
 
Era o Lucas, amiguinho de longa data, desde o tempo em que Felipe tinha mais linguagem. Ainda na fila, ouvi um outro menininho dizer: "Ih, menino com menino?", mas Lucas não deu a menor bola. E começou a dança. Lucas deu o braço para o Felipe e o manteve ali com rédea curta! Mesmo assim, de vez em quando, Felipe tentava escapar... Lucas o buscava e continuava a fazer os passos. Olha o túnel! Os casais param, elevam os braços para cima e, de mãos dadas, cada duplinha vai passando pelo túnel. E lá estava o Lucas mostrando ao Felipe por onde ir. Olha o caracol! Todos de mãos dadas fazem um percurso cheio de curvas. Que complicado para meu principezinho! Sem problemas: o querido Lucas ajudava-o a encontrar o caminho certo.
 
Tem dias que choro, sim, pelas limitações que o autismo impôs ao meu filho, pela perda do futuro idealizado. Mas nesse dia eu chorei de felicidade pela certeza de que o transtorno não tirou de meu filho os amigos que ele fez. Depois eu soube que ninguém pediu para o Lucas ser o par de Felipe. Ele simplesmente se ofereceu. São meninos de apenas 5 anos. Isolda e Marcelo, o filho de vocês vale ouro e nós sentimos muito orgulho por ele fazer parte de nossas vidas.
 
Ah, no início da festa Felipe ganhou um abraço apertado da Olívia e, depois da dança, Nina puxou-o pela mão para dar um passeio (e quando me viu com a máquina fotográfica em punho, logo fez pose ao lado do amigo). Os companheirinhos da turma (tem ainda o Vinícius, a Manuela, o Guilherme e a Bia) de vez em quando vêm me contar, orgulhosos, que Felipe falou a palavrinha tal. E a mediadora do meu príncipe já me disse que quando ele completa uma tarefa, a galerinha bate palmas e comemora seu feito. Não é fofo?
 
Sem nenhuma formação em Son-rise, Floortime, ABA ou qualquer outro método de estimulação de autistas, essa criançada invade o mundinho do Felipe e ajuda-o a se desenvolver tanto quanto os mais conceituados profissionais poderiam fazê-lo. E o único método que elas usam é o da amizade. Querem fazer parte da vida de Felipe sendo ele exatamente como é - sem se preocupar com "como ele deveria ser". Taí uma lição que estou aprendendo. Criar uma criança especial destrói todos os "deveria ser" que nós cultuamos ao longo de nossa vida.
 
Abaixo, o querido Lucas, de chapéu, de braços dados com o príncipe Felipe!
 
 
 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Irmãos: entre abraços e cascudos


Rafael é o súdito mais fiel do reino do príncipe Felipe. Seus olhinhos acompanham, brilhantes e sorridentes, cada passo do irmão mais velho. Felipe interage com o Rafa, normalmente, de duas formas: dando-lhe uns cascudos, quando está com ciúmes, ou com seu abraço de urso, daqueles bem apertados, quando está feliz com a companhia do irmão caçula, de 9 meses. Em ambas as situações, eu e Carlos imediatamente corremos para socorrer nosso bebezão. E percebemos que o Rafa está, simplesmente, rindo à beça, adorando a bagunça! Mas, apesar de ficar muito feliz de ver o amor que começa a nascer entre os irmãos, tenho uma certa preocupação com o relacionamento deles no futuro.

Essa semana li no blog Todos somos semelhantes os comentários de Gislane, mãe do Matheus, sobre o filme Sei que vou te amar, que retrata a vida de uma família com um dos filhos autista. Ainda nem assisti, mas a história já me tocou muito profundamente. A mãe está grávida e, com pré-eclampsia, precisa ficar de cama. Assim, Thomas, de 16 anos, precisará cuidar de seu irmão mais velho, Charlie, com autismo não verbal. Antes desse início de contato, o irmão nao tinha vontade de fazer nada com Charlie. Muitas vezes, ele comenta com o pai que gostaria de acordar ao lado de um irmão normal. E durante uma conversa com Charlie ele conta o quanto odiou ser irmão de uma pessoa com tantas dificuldades - Charlie entende tudo que ele fala... A convivência forçada transformará esse relacionamento, mas não sei o fim. Espero que seja feliz.  

A verdade é que o autismo tem um conjunto peculiar de comprometimentos que colocam os membros de uma família em uma situação delicada. Pesquisadores dessa área sugerem uma lista de estressores que irmãos de crianças com autismo podem vivenciar, tais como: mudanças de papéis na família, perda ou ausência de atenção dos pais, sensação de vergonha frente aos colegas devido ao comportamento bizarro que crianças com autismo podem apresentar.

Aqui, já faço um mea culpa: no dia a dia, acabo dando mais atenção ao Felipe, que tem quase 6 anos, que ao Rafa, que ainda é um bebê. Felipe faz uma série de terapias, o que diminui o meu tempo em casa com o Rafa. E, se os dois começarem a chorar ao mesmo tempo, é ao Felipe que vou atender, porque não quero que ele fique muito angustiado. A não ser quando o Carlos ou o Daniel (o super-irmão dos meninos por parte de pai, de 14 anos) estão por perto, pois eles têm o dom de inventar brincadeiras malucas que fazem nosso príncipe parar de chorar. Enfim, estou tentando conseguir equilibrar a atenção que dispenso aos dois, juro.

Mas a questão do constrangimento é a que mais me preocupa. Embora tenha fé que Felipe voltará a falar e conseguirá vencer os obstáculos que impedem seu desenvolvimento, não ignoro a probabilidade de ele carregar a dificuldade de comunicação, interação e "adequação" social. É comum que pessoas autistas não consigam controlar surtos e estereotipias (movimentos repetitivos de auto-estimulação, como balançar o corpo para frente e para trás, balanças as mãos, mexer os dedos na frente dos olhos, emitir sons vocais). Felipe, hoje, não apresenta muitas estereotipas - range os dentes quando está tenso; às vezes, ao ficar muito nervoso, balança as mãos; e tem a mania de levar objetos à boca. Mas, como já contei aqui, ele não reconhece limites e, às vezes, faz coisas como gritar em público ou se aproximar de pessoas desconhecidas para tocá-las ou para pegar algo que elas estejam comendo. Além disso, lugares barulhentos e muito confusos o deixam nervoso - temos evitado festinhas de aniversário, por exemplo.

Se nós, pais, ficamos sem graça com esses comportamentos (cada vez menos, pois hoje sabemos, definitivamente, que há coisas muito mais importantes do que as aparências), imaginem como se sente um irmão. E vale frisar: Felipe ainda é criança, o que torna qualquer comportamento fora do padrão mais aceitável. Como se sentirá o Rafa, ainda mais quando seu irmão mais velho já for um rapaz ou um homem?

A nós, pais, por enquanto, cabe estimular o fortalecimento desta amizade -  a relação fraternal é, via de regra, a mais duradoura da vida de uma pessoa. Vamos continuar incentivando os abraços, beijos e carinhos entre esses dois principezinhos. Que, quando me olham - os dois, com seus olhos tão expressivos - parecem estar me dizendo: "Mamãe, fique tranquila! Vai ficar tudo bem!".

domingo, 20 de maio de 2012

Das batalhas e alegrias nossas de cada dia

Ser mãe e pai é uma empreitada deliciosa, gratificante e... exaustiva. Mas ser mãe e pai de uma criança com deficiência leva as coisas a um nível de fadiga que poucos conhecem. Por mais que eu tenha uma boa noite de sono - e há oito meses não tenho, mas por um ótimo motivo, que é alimentar nosso caçulinha, Rafael, nas madrugadas -, há um cansaço físico e emocional que está sempre ali. Visitas a médicos e exames não ocorrem poucas vezes no ano. Quase todo dia tem uma terapia: fonoaudiologia, psicomotricidade... Estamos considerando agora a musicoterapia e algum esporte. O tempo livre muitas vezes é usado pesquisando por novos tratamentos, escolas, medicação e até dietas que prometem melhora.

Além disso, como um verdadeiro membro da realeza, nosso príncipe Felipe precisa de auxílio para todas as tarefas diárias: escovar os dentes, tomar banho, se vestir, se alimentar e ir ao banheiro (ainda não conseguimos que ele faça o nº 2 no vaso, então, o trabalho é duro meeesmo). Na escola, este ano, ele conta com a ajuda de uma mediadora escolar (a psicóloga Karina, uma jovem muito aplicada), além da auxiliar Dalva (que, se eu pudesse, carregava para casa para ser babá do Felipe). E, viva!, nosso garotinho está participando de algumas atividades em sala de aula, permanecendo junto com o grupo por bons períodos.

Me pego muitas vezes impaciente com todo esse trabalho. Nos lugares públicos, temos que segurar Felipe o tempo todo para que ele não saia correndo e se perca, não meta a mão na comida dos outros, não dê um de seus deliciosos abraços de urso numa criança de dois aninhos (eu já não sei onde enfiar minha cara nessas situações, hehehehe). Em casa, temos que impedir as traquinagens - algumas perigosas, como ingerir líquidos tóxicos (desinfetante, acetona etc), outras inofensivas, porém, de tirar do sério, como tirar a terra dos vasos de plantas. Enfim, um trabalho que a maioria dos pais tem por uns dois ou três anos. Para o Carlos e para mim, já dura quase seis anos e não há prazo para acabar.

Às vezes, imagino como ele estaria hoje se não tivesse o transtorno desintegrativo. O mesmo garotinho lindo, convidando amiguinhos para brincar em casa, pedindo presentes, contando histórias de seu dia, perguntando sobre o mundo que o cerca. No entanto, me alegro quando vejo as pequenas conquistas de Felipe: a execução de uma solicitação - como calçar as sandálias, acender a luz, tirar a calça, dar tchau - ou quando ele resolve cantar o pedacinho de uma música: "Coelhinho da Cuáscua, que tazes a mim? Um ovo, dois ovos, assim!"  Coisas tão simples, mas que, para uma mãe e um pai de uma criança autista, despertam a esperança de um futuro promissor.

Até onde ele vai chegar não sabemos, mas escolhemos a forma que, acredito, seja a mais saudável, de lidar com a síndrome - a da inclusão social, que requer enfrentamento diário de obstáculos, o convívio com crianças com desenvolvimento normal em uma escola regular e o estímulo cognitivo através de pessoas qualificadas e apaixonadas. Não existe uma fórmula de sucesso para o prognóstico favorável de crianças com autismo, mas acreditamos que existe um caminho: o do amor, da compreensão e da dedicação, ingredientes indispensáveis para o progresso de qualquer criança.



quinta-feira, 10 de maio de 2012

Num reino distante


Meu filho mais velho, o Felipe, é um príncipe. E, como todo príncipe, vive num reino distante. Mas não foi sempre assim. Vou tentar contar como ele foi parar lá no tal reino. Essa viagem começou há pouco mais de um ano, quando ele tinha quatro anos e meio. Hum, esse post vai ser longo...

Até então, eu me preocupava com um pequeno atraso de linguagem que Felipe apresentava. Ele também não era muito de se juntar às outras crianças. Mas, desde que meu garotinho tinha três anos, íamos regularmente a uma neuropediatra renomada, que acompanhava o seu desenvolvimento, e a uma psicóloga/psicomotricista, nossa querida Ana Paula, que o acompanha até hoje. Ele vinha progredindo bastante! Felipe adorava DVDs de desenhos animados, livros de histórias, teatrinho, os bonecos de seus personagens prediletos e os carrinhos Hot Wheels e suas pistas de corrida mirabolantes. Era craque no Lego e também fazia desenhos lindos: bichinhos, pessoas, frutas. A professora da creche destacava que, no desenho, ele era imbatível. De repente, de repente mesmo, tudo degringolou.

Percebemos essa mudança de comportamento a partir de fevereiro de 2011 (logo depois que eu descobri que estava grávida do Rafael, mas essa hístória fica para depois). Felipe começou a ficar birrento, chorão, ansioso, medroso. Quem tem criança pode pensar que, ora, isso é normal, é fase, meu filho já passou por isso. Mas era tudo multiplicado por 10, cem, mil, sei lá. Ele virou uma criança triste. Passou a ter medo de tudo e, principalmente, de me perder. Ficava agarrado comigo o tempo todo. Parecia, às vezes, estar vendo coisas e tinha pavor dessas coisas. Ficou agressivo e sua agressividade surgia do nada, sem que ninguém tivesse feito algo contra ele. Na escola, se recusava a participar de qualquer atividade. Só chorava. A agitação não o deixava dormir. Não raro, só apagava lá pras 3, 4 horas da manhã. Foi quando a neuropediatra bateu o martelo: ele precisava ser medicado.

Relutamos muito: eu e Carlos, meu marido. Foi difícil aceitar que nosso garotinho, tão pequeno, precisava tomar remédios psiquiátricos. Até que a diretora da creche me chamou e disse que eu, com meu preconceito, estava deixando meu filho sofrer. E, em maio de 2011, ou seja, há um ano, ele começou a tomar a risperidona.

Dou meu braço a torcer: Felipe voltou a sorrir. E voltou a dormir. O medo e a ansiedade foram embora na maior parte do tempo. Mas, aos poucos, meu rapazinho começou a perder o interesse nos brinquedos, nos desenhos animados, nas historinhas dos livros, nas atividades propostas na creche. Continuou agitado. E cada vez mais disperso, mais distante... E falando cada vez menos. Embarcou na viagem para o tal reino.

Em agosto, a neuropediatra, numa avaliação feita junto com uma psiquiatra, disse que o Felipe se encontrava no espectro autista. Eu não entendia aquilo. Como podia ser, se até então ele não era autista? Ao ouvir isso, fiz o que toda mãe faz quando ouve um diagnóstico (ou algo parecido com isso): fui descobrir quem eram os maiores especialistas no assunto. E, então, cheguei ao nome da neuropediatra que trata o Felipe agora.

Fomos ao seu consultório em janeiro passado depois de mover mundos e fundos para conseguir uma consulta o quanto antes (a agenda dela é lotadíssima). Depois de ouvir um "Nossa, como é bonito esse menino. Parece um príncipe!" (não sou só eu quem acha isso, viram?), recebemos em seguida um diagnóstico (ou, mais uma vez, algo parecido com isso) assustador:
- Se eu tivesse de fazer um laudo para um juiz, colocaria que o Felipe tem o chamado Transtorno Desintegrativo da Infância. Mas, como não precisamos fazer laudo algum, vamos trabalhar em cima dos sintomas do Felipe e não de um diagnóstico - disse a neuropediatra.
Lá fui eu descobrir tudo sobre o tal transtorno, chamado também de Síndrome de Heller. As crianças com essa perturbação, após um período de desenvolvimento psicomotor convencional de três ou quatro anos, experimentam uma regressão psicomotora, levando-as à perda das faculdades intelectuais e a um estado de alienação. Punk.
Algum tempo depois de instalada a regressão, as crianças passam a apresentar as alterações comportamentais encontradas no autismo (especialistas tratam a doença como autismo de início tardio). Assim, dentre outros sintomas, demonstram graves problemas na compreensão da linguagem, dos gestos e da expressão facial dos seus interlocutores.
Para se fechar um diagnóstico, os artigos médicos descrevem assim:
Obrigatoriamente, terão de ser referidas perdas em pelo menos duas das seguintes áreas:
- Linguagem expressiva (deixa de nomear objetos, perde a capacidade de juntar palavras) ou compreensiva (deixa de compreender pequenas ordens, perde a capacidade de reconhecer objetos)
- Socialização e autonomia (perde o interesse de brincar com os pais ou com crianças, deixa de reconhecer pessoas familiares, mostra-se incapaz de utilizar a colher ou de beber num copo, perde a capacidade de tirar as meias e os sapatos)
- Controle intestinal (deixa de controlar as fezes) ou vesical (perde a capacidade de controlar a urina);
- Jogos (perde o interesse em brincar ao "faz-de-conta", deixa de bater palminhas, mostra-se incapaz de utilizar os brinquedos de forma funcional);
- Motora (deixa de correr ou de andar, perde a capacidade de utilizar o lápis no papel, mostra-se incapaz de fazer a pinça fina).


Felipe não deixou de correr (pelo contrário, ele passa quase o tempo todo correndo dentro de casa) ou de reconhecer as pessoas próximas e compreende pequenas ordens. Mas, o melhor de tudo, é que, ainda que nosso príncipe não saiba muito bem como brincar, ele se diverte com muitas coisas: adora quando eu e o pai dele corremos para pegá-lo, fica extremamente feliz ao mergulhar no mar, tem mania de agarrar as outras crianças e curte muito quando elas entram na "brincadeira" dele.
Ainda me desespero um pouco quando leio que a evolução desta doença é geralmente desfavorável - o prognóstico parece ser mais reservado do que nos casos de autismo clássico ou outras síndromes do espectro, como a de Asperger. Depois da fase verdadeiramente dramática que corresponde à regressão psicomotora, está descrito, com frequência, um período de não progressão da doença (não evolutivo), mas com poucas melhorias subsequentes. Mas estamos decididos a não nos deixar abater. É claro que nem sempre eu consigo cumprir com essa decisão. Aí vem o Carlos e me lembra que o Felipe precisa que a gente não esmoreça. Jogo uma água no rosto e arregaço as mangas novamente.